Estado de Minas destaca participação da professora Carla Furtado em evento realizado no último fim de semana em BH, a convite da FIEMG, do SEBRAE e do IEL.
Tiger's Nest, Paro, Butão
Carla Furtado*
Do Livro Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da Complexidade
Sobre o Butão
O Butão é uma monarquia constitucional espremida entre a China e a Índia. Cercados pela Cordilheira Himalaia, os cerca de 760 mil habitantes parecem ter entrado em acordo com o tempo, vivendo sem pressa o que verdadeiramente possuímos: o presente. Aterrissar no aeroporto internacional de Paro não é tarefa para turista, mas sim, para peregrino.
Pequeno, em crescimento no comércio internacional, o Butão vem mostrando ao mundo que as escolhas não precisam ser binárias, que não é necessário optar entre o meio ambiente ou a economia, as pessoas ou o lucro, o PIB ou o bem-estar social. A filosofia e o modelo de gestão pública estabelecidos propõem crescimento com valores. Em esferas mais sofisticadas, esse paradigma se chama sustentabilidade, o maior desafio da civilização humana nesta década.
Primeiro e único país carbono-negativo, o Butão não só zera suas emissões como também neutraliza o CO2 emitido por outras nações. Garante em sua constituição a cobertura obrigatória de 60% de seu território por florestas. Afere periodicamente o Índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) de sua população. Estabelece prioridades nas políticas públicas de acordo com as vulnerabilidades observadas na pesquisa FIB - isso independente do partido no poder. Garante saúde e educação para 100% da população. E, apesar de ter no turismo sua segunda fonte de receita, não hesitou em fechar as fronteiras para combater a pandemia do COVID-19.
Sobre Felicidade Interna Bruta
O FIB ganhou destaque mundial em 2012, após reunião do alto comissariado da ONU, na qual foi apontado como novo paradigma de desenvolvimento socioeconômico (Royal Government of Bhutan, 2012). Para preparação de sólido arcabouço teórico, por iniciativa do Butão e com o apoio da ONU, foram convocados 28 cientistas de diferentes áreas e nacionalidades. Nomes como Alejandro Adler, Ed Diener, Ilona Boniwell, Martin Seligman e Sabina Alkire trabalharam no compêndio intitulado Happiness: Transforming the Development Landscape (2017).
O termo Felicidade Interna Bruta foi cunhado pelo quarto rei do Butão, Jigme Singye Wangchuck, tendo sido mencionado pela primeira vez em 1979, durante entrevista do então monarca durante visita à Índia. Questionado sobre o Produto Interno Bruto de seu país, ele apontou que no Butão o FIB era mais importante que o PIB. A partir daí, o país passou a orientar suas políticas e planos de desenvolvimento com foco no FIB (Ura et al., 2012). Mais tarde, o rei instituiu na nova Constituição o artigo 9º, no qual o Estado deveria promover todas as condições para o alcance da Felicidade Interna Bruta (Bhutan, 2008).
O FIB engloba filosofia, modelo de gestão e índice. Como filosofia está apoiado em valores tangíveis e intangíveis, não se opondo ao PIB, mas à ideia de que a busca pela prosperidade seja o objetivo único do Estado. Defende que o desenvolvimento sustentável deve adotar uma abordagem holística em relação às noções de progresso e dar igual importância aos aspectos não econômicos, como o bem-estar da população e a preservação do meio ambiente (Zangmo et al., 2017). Enquanto modelo de gestão, está alicerçado em quatro diretrizes: desenvolvimento econômico sustentável, preservação do meio ambiente, promoção e preservação da cultura e boa governança.
Como índice, o FIB mensura as condições da população para a felicidade e não a felicidade em si. De natureza multidimensional, difere das escalas de bem-estar subjetivo concebidas no ocidente e não está focado na felicidade individual apenas, por considerar que a busca pela felicidade é coletiva (Ura et al., 2012). Avalia nove domínios: Bem-Estar Psicológico, Saúde, Educação, Cultura, Uso do Tempo, Boa Governança, Vitalidade Comunitária, Resiliência Ecológica e Padrão de Vida.
O índice FIB é elaborado a partir de pesquisa nacional por amostragem, realizada a cada cinco anos. Funciona como ponto de partida para a realização do Plano de Governo para os anos subsequentes, cabendo às lideranças estabelecer políticas públicas e ações que incrementem os domínios vulneráveis, com o objetivo de elevar o índice (Ura et al., 2012).
Em Primeira Pessoa
Ao contrário do que é amplamente divulgado, o Butão não é o país mais feliz do mundo, não figura nessa posição em nenhum ranking e não carrega em sua narrativa o desejo de competir por esse lugar. Além disso, a nação tem importantes desafios, em especial no âmbito do crescimento econômico, imprescindível ao seu desenvolvimento, e na preservação de sua identidade e cultura.
O Butão não é uma utopia, é um exercício vivo no combate à distopia. É a busca por uma gestão pública que não perca de vista a razão da política, que é o bem-estar do cidadão. É um convite à reflexão acerca do que realmente importa. Afinal, como disse Robert Kennedy: "o PIB mede tudo, exceto o que faz a vida valer a pena". O país, com seu FIB, propõe que mensuremos o progresso considerando economia, meio ambiente e felicidade.
Mais do que um destino, o Butão nos oferece a experiência de um novo paradigma, nos lembra que o mundo tal qual vivenciamos é uma construção da mente humana e, como tal, pode ser reconfigurado. "A felicidade é um lugar", diz um dos slogans já adotados pelo país. Desde a primeira vez que pisei no Butão, este lugar está em mim.
*Diretora do Instituto Feliciência e autora do livro Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da Complexidade. Docente de Psicologia e Sustentabilidade na Cátedra Unesco, na PUCRS e no Hospital Israelita Albert Einstein. Pesquisadora Científica na USP e na Universidade Católica de Brasília. Especialista em Felicidade Interna Bruta pelo Schumacher College (Reino Unido) e pelo Gross National Happiness Centre (Butão).